Enquanto escrevo minha filha pré adolescente está no computador jogando “The Sims”. O jogo faz sucesso há décadas e consiste em viver a vida de um personagem totalmente definido pelo jogador, que escolhe desde sua aparência, traços de personalidade e objetivos de vida durante a fase de criação, passando por decisões importantes em sua jornada, como onde irá morar, qual será sua profissão, quem serão seus amigos, se irá se casar e ter filhos, até as ações do dia-a-dia, como alimentação, exercícios, descanso, etc. O jogo apresenta indicadores e o objetivo é ter sucesso e ser feliz.
No momento ela joga um pacote de expansão em que sua personagem tem como objetivo de vida ser uma YouTuber de sucesso. Enquanto joga, minha filha ainda assiste vídeos de seus YouTubers favoritos no tablet e conversa com os amigos no celular. Totalmente imersa. Feliz. E bem sucedida nessas atividades.
Hoje pela manhã eu ouvindo rádio, que é um hábito de pessoas analógicas, mas que foi digitalizado, já que ouço pela minha assistente pessoal Alexa, quando o apresentador narrou uma cena comum na vida cotidiana que nós, professores analógicos em nossa maioria:
Professor abre a sala de aula virtual. Os alunos começam a se conectar. São crianças cerca de 10 anos. - "Bom dia turma! Todos conectados? Podemos começar?" Nesse ponto alguns respondem pelo microfone, outros pelo chat. Outros estão sonolentos ainda e apenas balançam a cabeça, com a câmera fechada mesmo. - "Ótimo! Vamos lá então? Por favor peguem seus livros e abram na página 68." Silêncio. - "Todos com o livro aberto na página 68?" Silêncio. - "Vamos ler o primeiro parágrafo da página 68." - "É pra fazer o que mesmo professor?" - "Por favor abram o livro na página 68." Silêncio. - "Certo, vamos fazer então a leitura alternada do texto? Quem quer começar?" - "Qual texto professor?" - "Página 68. Começando no primeiro parágrafo. Vamos lá? Quem começa?" Silêncio.
É verdade que vivemos tempos de isolamento e, sejamos sinceros, ninguém aguenta mais reunião via Teams, Zoom, Skype e semelhantes, mas a cena proporciona uma outra reflexão: Como um professor analógico educará a geração digital?
Nós, geração analógica, fomos criados na cultura de “O que você vai ser quando crescer?”. Os adultos nos provocavam, e éramos “forçados” a escolher uma profissão: médica, engenheiro, bombeiro, bailarina, astronauta, jogador de futebol… E os adultos foram nos preparando para a nossa própria maturidade e independência, estimulando algumas profissões através de brincadeiras e atividades extra curriculares que, no fundo, iam preparando para o trabalho.
Esse modelo funcionou até aqui, mas como preparar uma criança para ser YouTuber? Indicaríamos a faculdade de jornalismo, por exemplo? Não estaríamos matando o sonho ao tentar colocar algo tão novo em um formato tão antigo quando as folhas impressas que nossos antepassados liam enquanto tomavam café? Não se trata de valorizar ou desvalorizar uma profissão, mas o curso de Jornalismo foi concebido para um mundo analógico. Jogador de LoL, Digital Influencer, Roteirista de Jogos Digitais, Modelador de Realidade Virtual… Esses são os sonhos das crianças digitais.
É pra fazer o que mesmo, professor?
A resposta mais sincera talvez seja: “Não sei.”
Seguido de um “Faça o que quiser.” E depois “Se isso te fizer feliz.” E uma repreensão: “Mas faça bem feito!”
Professores, devemos reconhecer nossa idiossincrasia. Precisamos encarar o fato de que o mundo adquiriu uma velocidade alucinante, e que há muitas coisas mais interessantes para nossas crianças do que o conteúdo que tentamos fazê-las aprender lendo a página 68. Aliás, a internet está abarrotada de conteúdo ensinando qualquer coisa que se queira aprender. E as crianças sabem aprender o que lhes interessa.
Nosso desafio, caros professores e professoras, pais e mães, é preparar uma geração para desafios que não existem ainda, usando instrumentos que adquirimos em um mundo que não existe mais.
Esse desafio vale a pena se focarmos em educar e formar o caráter e compartilhar valores. Sermos mais humanos. O conteúdo eles buscam na internet.
Feliz dia dos professores. Sejamos felizes.